19 de setembro de 2005

Mandela (ou Milano C.le 1)

Fui ter com ela porque era a única consequência daquilo que sentia.

E, ainda assim, viajava na mais completa escuridão. Quando entrei no autocarro que me levou do aeroporto até à estação central dos combóios, onde ela me esperava, já passava da meia-noite e a última réstia do calor do sol já tinha desaparecido.
Foi com a cabeça encostada ao vidro que dava para o frio da noite que percebi que a única consequência daquilo que sentia era estar dentro daquele autocarro, a atravessar aquela noite, à espera de encontrá-la naquela estação.

Não sabia quem era a pessoa que ia encontrar, não sabia como iria reagir, o que iria suceder depois dessa reacção.
Não sabia o que aconteceria a seguir,
se viajaria com ela,
sozinho,
se viajaria de todo, quando, por onde, até onde, por quanto tempo.
Não sabia se estava a 2 dias, 2 semanas ou 2 meses de voltar a casa.
Não conhecia a pessoa que ia voltar a ver. Deixara de a conhecer naquele dia 9 em que me tentara dizer que não-me-podia-dizer-mais-nada, em que me tentara explicar que estas-coisas-não-se-explicam.
Viajava mergulhado nessa escuridão.

No meio da escuridão, em que não vejo nem oiço nada, em que me sento dentro de um autocarro que atravessa essa escuridão e encosto a cabeça ao vidro que não me deixa ver para além dessa escuridão,
nesse preciso momento,
a única coisa que conta sou Eu.
E chamo a mim tudo o que é Bom, ou é Santo, ou é Certo, ou é Belo.

"Uma vez jurei-te que em cada coisa de belo que fizesse ou fosse, havia de estar um bocado de ti". Envio uma mensagem de paz para o meu passado
e chego à estação.
Milano Centrale, Milano C.le.

Era dia 13. Faltavam 2 meses para que a nossa relação pudesse ter tido 2 anos e 1/2.
Sabia o que ia acontecer.
Encontrei-a e deu-me um beijo na face, que não era gélido, que nunca poderia ter sido absolutamente gélido. Já o sabia. E não houve surpresa.
No caminho para sua casa, viajei colado a ela na sua vespa, tentado não me colar demasiado, tentando principalmente não lhe fazer perceber que sorvia o perfume da sua pele, dos seus cabelos que descobri que adoro ainda, sem lhe poder dizê-lo. Ainda.

O meu ainda nasceu naquele instante em que redescobri que adoro o perfume dos seus cabelos dourados,
como os de um anjo,
dos seus cabelos que sabem a anjo.
Nesse instante morreu a minha parte da dúvida, deixei de não saber se não queria estar com ela e passei a ter a certeza de que queria ainda não estar com ela.
Faltava enfrentar a dúvida dela.

Sentámo-nos na cozinha.
Comecei a falar.

Sabes porque chorei naquele dia em que saí de Lisboa?
Às vezes começamos a fazer umas coisas atrás das outras, só porque vêm a seguir às outras que tínhamos feito antes. E nessa rotina de responder à pergunta o-que-é-que-queres-fazer-a-seguir? com alguma coisa que faça sentido a quem nos ouve, perdêmo-nos. Na rotina de fazer aquilo que se espera de nós, esquecêmo-nos de quem somos o do que queremos fazer.
E nesse momento as nossas namoradas esquecem-se de quem nos somos, e os nossos pais ficam tristes e os nossos amigos perguntam-nos o-que-tens?-andas-chateado-com-alguma-coisa?

Mas um dia há uma frase qualquer ouvida na televisão que nos faz chorar sem sabermos porquê.
"A erradicação da pobreza não é uma questão de caridade, é um acto de justiça".
Nelson Mandela.
E quando nos esquecemos de cada gesto que não abrace essa luta bela é um gesto gasto, perdemos as nossas namoradas, os nossos pais, os nossos amigos.

Quem lhe dizia isto eram os meus lábios e a minha língua, mas quem lho garantia,
e garantirá sempre,
eram os meus olhos, e as lágrimas que deles escorriam.

A sua mão sobre a minha, outra vez, como há 2 anos e 1/2,
menos 2 meses
e, se bem que o tudo ainda não tivesse recomeçado,
o nada voltou a deixar de o ser nesse instante.

E não voltei a viajar na escuridão.

Carlos Miguel Maia