22 de fevereiro de 2009

Comboio Nocturno para Lisboa


Demorou mas foi. Fui finalmente capaz de terminar a famosa viagem nocturna para Lisboa. E não foi nada fácil. Eu que sou o último a queixar-se de viagens demasiado longas, tive que ir realmente às reservas para não abandonar o comboio a meio e apanhar um avião para casa.

Não é que o livro esteja mal escrito, que seja particularmente desinteressante, que a premissa não cative ou que backdrop filosófico não dê no que pensar. O que falha é a tentativa desajeitada de adivinhar um país e um povo, a passagem grosseira de preceitos culturais do país de origem do autor para os nossos. Podia ser um comboio nocturno para Berlim ou Berna, para Lisboa nunca.

E é isso que atrasa a leitura: a incapacidade, enquanto português, de engolir aquelas personagens. Tudo acerca delas está errado. O autor deve ter lido algures, ou alguém lhe disse, que os ibéricos têm muitos nomes. Daí pôs-se a inventar nomes tirados de famosos escritores e das suas mais famosas personagens. O próprio herói, um médico filósofo, dá pelo nome de Amadeu Inácio de Almeida Prado (um portmanteau de Amadeu de Souza Cardoso e Eduardo do Prado Coelho?) e os seus amigos têm nomes como João Eça ou Jorge O'Kelly.

O contexto social é o da "nata da sociedade lisboeta", da nossa aristocracia. Ora, quem sabe o mínimo acerca do nosso país entende que a nossa aristocracia não é feita de longas gerações e que os nomes de família não querem dizer tanto como noutros lados. A nossa "nata" é tudo menos consistente. Um dos motores das descobertas e da exploração do comércio na Ásia, foi a extrema mobilidade social, o nosso individualismo que nos leva a crer que podemos atingir o estatuto de aristocrata no curso de uma vida, e não raras vezes consegui-lo. Da mesma forma que, frequentemente, um tal estatuto se pode perder não antes da geração dos nossos netos.

Mas o dado mais mal representado é a ditadura salazarista. O autor vê-a e descreve-a como se do nazismo se tratasse. A crueldade e violência de alcunhas como "o carniceiro de Lisboa" (mais uma referência escamoteada, desta vez a Klaus Barbie?) ou o modo como ele retrato o conflito moral do protagonista face a um regime capaz de deter prisioneiros de consciência no Tarrafal, não fazem incidir uma luz de verdade sobre os anos de Salazar. Seria o último a menosprezar as vítimas da ditadura em Portugal, muito menos as do Tarrafal, mas o respeito pela verdade leva-me a lembrar que o Tarrafal não é comparável a um campo de concentração nazi e que a PIDE não era igual às SS, por muito que tenha frequentado os seus campos de treino. O efeito mais insidioso da nossa ditadura não foi a sua violência explícita, mas a lobotomia frontal que operou sobre um povo inteiro e de que mesmo nós, a geração nascida após a sua queda, ainda padece. Esse efeito bem mais duradouro e pernicioso escapa (como tantas outras coisas) por completo ao autor.

E depois há a fixação da personagem principal com as viagens de comboio. Como poderia algum português viver um tal fascínio sem nunca ter saído do no nosso país? Viajando frequentemente entre Lisboa e o Entroncamento? Justapôr uma "cultura da ferrovia" em Portugal, como a que existe nos países do norte da Europa, é totalmente despropositado e descabido.

Resulta óbvio que o autor quis dar um sentido de fim de linha aos acontecimentos e às vivências de um professor de literatura suíço que, de repente, se vê compelido a aprender português e a viajar até ao nosso país. Mas a escolha de Lisboa, quer pelo personagem quer pelo próprio autor, parece ter sido totalmente arbitrária. O autor limitou-se a abrir o Atlas e ver onde ficava o ponto mais ocidental da Europa continental. E fê-lo porque, suponho, o chunnel não estava pronto aquando da ideia original para o livro. O dedilhar a orla costeira da Península Ibérica, deu com o cabo da Roca que, aliás, o autor ignora por completo, fazendo a trama desenrolar-se até ao cabo Finisterra, na Galiza, esse sim com um nome mais sonante. Mas acabou por cismar com essa ideia de "cidade no fim do mundo" e escolheu Lisboa para uma aventura de cartilha, que já tinha na cabeça, independente toda ela do local onde se desenrolasse. Ora, nunca nada é independente do local onde se desenrola, muito menos uma aventura.

E, por isso, não tinha feito mal ao autor apanhar um desses comboios ele próprio.