30 de dezembro de 2005

Come mai?

Foi a casa mais pobre onde alguma vez dormi. Tinha 2 quartos e uma cozinha, para onde dava a porta da rua.
Sim, entrava-se da rua para a cozinha...
Era impossível manter a limpeza por causa dos 3 cães.
Pelo menos lembro-me bem de 3, se bem que às vezes os meus sentidos parecessem ouvir 4.
A casa tinha 3 portas que ligavam o primeiro quarto à cozinha e a cozinha, que ficava no meio da casa, ao segundo quarto. Todos os compartimentos era rectângulos e os 3 formavam um rectângulo maior que era a casa.
Nas portas não havia fechaduras. Usavam um elástico ou uma alsa de um soutien prender a porta a um prego cravado na parede. A única utilidade era evitar que os cães deambulassem livremente pela casa, se bem que o objectivo saisse furado a cada instante.
A dona da casa era a nonna Maria, avó de Giacomo, sempre no seu pijama de verão, a fumar cigarros e a jogar um solitário siciliano que nunca não me quis ensinar.
A relação entre eles, e deles comigo, era tão linear como as paredes e tão aberta como as portas. A casa é o reflexo da gente. Suja e descuidada, sim, mas franca, aberta e alegre.
E não faltava lá nada.
As palavras são do próprio Giacomo: na Sicília não falta nada, a não ser o dinheiro.

Ao almoço do último dia, spaghetti cozze e vongole, um rico prato de massa e fruto do mar azul que se estendia da janela do quarto onde dormi.
À despedida agradeci à nonna Maria que no último momento deixou escapar mais um momento da sua alma escancarada.
Tu, aqui tão longe de casa, tão longe da próxima pessoa que te é familiar, tão sozinho. Como que raio é que vieste parar à Sicília? Come mai sei venuto in Sixilia? Come mai, Miguel?

Giacomo & Elena

Do outro lado da carruagem chegavam-me as centelhas do fogo de Giacomo. Jovem imberbe, pelo menos do que me dava entender a distância a que estàvamos, aquele rapazinho do Sul era como um vulcão de letras que explodia a uma cadência que, comecei a notar, não era estranha ao que eu dizia.
Testei-o. Sempre que falava a Delva de Pessoa, ou de poesia portuguesa, do outro lado da carruagem sentia um salto… uma erupção vulcânica, como se aquele rapaz só quisesse uma desculpa para transformar aquela conversa entre mim e a minha vizinha, e aquela conversa entre ele e a vizinha dele, numa conversa a quatro. Estava a caminho da Sicília… joguei o às de trunfo. Disse uma palavra: Neruda!!
Adoro Neruda!!, disse logo na minha direcção.
Sabias que viveu boa parte da vida aqui na Sicília?
Sabia.
Adoro como fala das mulheres. Nunca gostei de ler e não tenho paciência para estudar, mas tenho os livros todos dele e li-os quase todos. Ah, a maneira como ele fala das mulheres. Le moglie, le moglie*, repetia. Aprendi a amar as mulheres com ele.

E uma mulher era exactamente quem ele tinha ao lado. Elena, a mais bela de todas, a princesa daquele Páris, daquele guerreiro-de-olhos-de-azeitona.

* Só para dizer que mulher, no Italiano oficial, é traduzível por donna enquanto que moglie tem o sentido de certa forma mais possessivo de esposa.
No italiano de Giacomo, aparentemente, não havia diferença entre os conceitos.

Pop quiz: Como é que se faz chegar um combóio à Sicília?

Pois bem, depois das aturadas pesquisas dos melhores engenheiros sicilianos, chegou-se à conclusão que não havia pontes a fazer, nem túneis a escavar, nem linhas milagrosas que caminhassem sobre as águas.

Então, pensei eu, saí-se do combóio, apanha-se um barco qualquer que nos leve de imediato para dentro daquela ilha, onde está um novo combóio à nossa espera para continuar a viagem.
Nada disso. Nem pensar nisso. Essas soluções enfadonhas não tinham nada a ver com aquilo de que os melhores engenheiros sicilianos se tinham lembrado:
Porque não fazer um grande barco, lento e pesado, e dentro desse barco construir dois carris, e ligar esses dois carris à linha do caminho de ferro.

E assim fazer com que o combóio, todo, em peso, entrasse dentro deste barco.

E fazer com que o barco (com o combóio lá dentro! quem é que teve esta visão e quem é que lhe foi dizer sabes, isso é capaz de não ser má ideia...), atravessasse o canal e se fosse ligar, carril com carril, à linha do outro lado, por onde o combóio sairia para prosseguir viagem.
Falar de engenheiros sicilianos é como falar de uma ventoinha no inferno.

Delva

Um caderninho de notas escrevinhado numa língua estranha, um rapaz solitário num combóio que vai de Nápoles às entranhas da Sicília… escrevinhando, escrevinhando… quis descobrir até que ponto tudo isto não é simplesmente de mais para a curiosidade feminina.
Podia ser que o meu italiano incompleto, feito de uma mistura rara de sotaque português com pronúncia milanesa fosse simplesmente confusão a mais.
Mais uma surpresa: se razões faltassem, aquela língua vagamente familiar que saía da minha boca aos trambolhões ainda aguçou mais a curiosidade daquela rapariga sentada ao meu lado.

Desculpe, como é que se faz para chegar à Sicília? É uma ilha e a não ser que tenham inventado um túnel ou um grande ponte, vamos ter que sair deste combóio e atravessar as águas num barco, ou não?
Sim e não..., foi a resposta que não insisti em não perceber para ficar a conhecer Delva melhor.

Vintage

A Sul de Nápoles, entre as ruínas da antiga cidade romana de Paestum e a vila de Agropoli existe uma extensão de areia calma e suave, moldada pelo mar tranquilo da costa de Amalfi.
O que surpreende que o mar é um assunto privado naquelas partes. Não é possível, por muito que se caminhe, encontrar uma entrada para o extenso areal branco porque todas as casas viram as costas à estrada e aos estranhos, como crianças mimadas que não querem partilhar o seu maravilhoso brinquedo.
Vontade contra vontade... É preciso arrombá-las, passar uma grade montada pela gente e fingir-se alheio aos mil olhares revoltados que nos fisgam.

Ainda tenho que me livrar de um último vestígio do Norte: a roupa pobre com que mal sobrevivi à exigência de uma noite passada na capital da moda, naquele areal, era como o traje de um rei caminhando no meio de uma selva de macacos nus.
À beira do mar encontro o refúgio que procurava: Um vendedor de calções de banho dorme debaixo do seu estendal. Aproximo-me. A escolha é fácil. De entre pedaços de pano disfarçando ser calções, só há um que não engana. É o mais velho, do tom mais vermelho, mais aberrante, do pano mais frágil, com um rebordo branco que esteve na moda 2 segundos,
há coisa de 20 anos.
Nem pensei duas vezes! E que surpresa, em Milão… saber que os meus calções afinal encontraram mais 2 segundos de vida, que o kitsch está na moda e que afinal tinha comprado uns calções muito vintage.