Lembro que já foi assim uma vez, quando estava diante de uma porta quase igual, a preparar-me para embarcar numa viagem à Bélgica.
É sempre assim. Sempre que se atravessa uma porta, o exercício mais difícil não é o de perceber que porta se está a atravessar e o que está do outro lado, não;
o exercício mais difícil e o mais útil é o de perceber
quem é que está a atravessar a porta.
Vem-se sempre à cabeça o mesmo miúdo de 15 anos a chegar à escola de manhã cedo.
Não era raro chegar à escola demasiado cedo porque em vez de apanhar o autocarro de manhã, o meu pai insistia em levar-me pessoalmente e cumprir com os horários dele queria dizer ficar 10 ou 15 ou mais minutos à espera no frio da manhã, esquecido do Sol.
Não me importava nada de ficar ali sozinho, muitas vezes o primeiro a chegar e aprender a passar aqueles momentos frios na minha companhia. Deve vir daí o meu gosto pelas manhãs frias que me lembram à pele o que não é mais sonhar.
Ocupava imediatamente o meu lugar, à frente do Bloco A; o primeiro de uma escola feia feita de 6 blocos todos iguais. Sentava-me num laje mais ou menos baixa, mais ou menos fria, de cimento, enquanto esperava um a um, a chegada dos meus melhores amigos.
Ainda não perdi o medo de não mentir acerca desse miúdo de 15 anos.
Eu não esperava, que me desculpem os meus amigos, senão por uma pessoa. Por uma rapariga. E a cada sombra longa da manhã que aparecia do outro lado da esquina daquele Bloco A, o meu coração preparava-se para o assalto contido que chegava quando, na verdade, a sombra era a dela. E nesse momento mentia-lhe tristemente e recebia-a com um sorriso quase indiferente e com um beijo de bom-dia que era o dia inteiro. E apertava-me os lábios para que deles não derretesse mais do que uma leve indiferença, e apertava-me as mãos para que não lhe fossem ao encontro e fizessem tudo o que ela queria e tudo o que ela precisava, sem que ela o notasse, sem que ela o soubesse. E explodia a cada vitória dela e preferia perder mil vezes contra ela e perdia sem ela saber.
E via-a passear pelas caras dos outros: "Bom dia! Bom tarde! Até amanhã..." e assim durante anos. Seis. Ficava ali, mudo, a fingir que fingia não olhar, na esperança que ela um dia visse além do fingimento e viesse ser minha.
É sempre assim quando veja a porta à minha frente e tento perceber quem a vai atravessar. Penso sempre nessa mentira feita de medo e de um bocado de mim.
E tento perceber quanto. Quanto desse rapaz me deixou para trás? Quanto desses anos, afinal, ainda levo dentro?
E penso nas 3 pessoas que sabem dela e de mim. Eu uma, tu e nunca ela.