Milano C.le (ou Milano C.le 2, melhor dito)
Na noite de 8 de Julho de 2005, na véspera da minha partida para Bruxelas portanto, tinha falado com ela ao telefone.
Vou para a Tunísia, dizia-me alegremente.
Para a Tunísia? Fazer o quê?
Vou trabalhar. Aqui há uns dias inscrevi-me numa agência de viagens que promove excursões e férias na Tunísia e eles ligaram-me. Depois fui fazer uma entrevista e eles querem que eu vá para lá. Vou receber os clientes ao aeroporto, acompanhar a vida deles no Hotel, organizar excursões de camelos pelo deserto...
(Pergunta estúpida) Então e eu?
(A resposta que se esperava) Vens ter comigo!
Eu estou de viagem marcada para Bruxelas e depois para Milão e, um dia antes de partir, dizes-me para ir ter contigo à Tunísia!?
Eu sei que é complicado, mas a vida na Tunísia não custa nada. Podias lá ficar uma semana ou duas...
Eu sei que, durante os dois anos que tinha durado a nossa relação até ali, devo ter dito muitas vezes qualquer coisa do género por-ti-amor-vou-a-todo-o-lado, vou-até-ao-inferno.
Só nunca pensei que me fossem realmente pedir para ir a Tunis por ela.
A verdade é que eu, por ela, vou mesmo a todo o lado. E isso nem deve ser visto como um compromisso de seriedade ou de sujeição ao sacrifício. Eu, mesmo sem ela, gostava de ir a todo o lado. Se ela me faz realmente percorrer os quilómetros, só tenho mesmo que agradecer o facto de ter encontrado alguém assim.
Tunis.
Quem me visse a falar com o Filipe na praça Schumann, ao lado do edifício da Comissão, não adivinhava que eu daí a menos de 2 semanas havia de estar em Tunis. Não adivinhava, porque nem sequer eu me conseguia ver em Tunis daí a duas semanas, com a roupa que tinha trazido para ficar algum tempo em Bruxelas, ou algum tempo em Milão, ou algum tempo fosse lá onde fosse.
Mas em Tunis? Nem fazia ideia de como é que se lá chega?
A melhor maneira de chegar à Tunísia quando se está no Norte de Itália é atravessar o país de autocarro até à ponta ocidental da Sicília, em Trapani, e apanhar um ferry que nos leva até lá pela módica quantia de uns 30 euros.
Acontece que em Itália não há uma companhia nacional de autocarros, até porque a companhia nacional de combóios serve realmente a nação toda. Portanto, é preciso descobrir para cada parte do trajecto qual é a companhia de autocarro que funciona na zona e ao melhor preço.
O plano final previa paragens em Roma, Nápoles, Reggio Calabria (na pontinha da bota) e Messina (já do outro lado do canal com a Sicília), Palermo, com chegada final a Trapani.
Nem todas as partes deste percurso estavam bem servidas por autocarros, havendo mesmo uma porção, de Nápoles a Roma, no caminho de volta, em que iria pedir boleia. Se toda a gente pode dizer que quem tem boca vai a Roma, eu havia de prová-lo cientificamente, poupando algum dinheiro no processo, arriscando um qualquer encontro com a Cosa Nostra pelo meio(a partir deste momento este blog passou a ser observado pela CIA... e a partir deste passou a ser traduzido pela CIA... oh, by the way, fuck you) mas não havia de ser nada.
Com apenas 35-40% do orçamento total de que dispunha empenhado na viagem, iria tentar viver por 15 euros diários na Tunísia, incluindo alojamento, ou talvez ainda menos, para poder lá ficar durante cerca de 13 dias. Espero que notem que têm agora os elementos suficientes para calcular algebricamente a miséria que eu levava comigo e assim perceber o que aquele podias-ir-lá-ter-comigo queria realmente dizer.
Surpresa.
Tinha deixado de saber se iria ou não à Tunísia. Tinha começado a hesitar ao telefone e a hesitação tinha resultado num refrear do entusiasmo do lado da agência de viagens.
Choque.
Ligaram-lhe a dizer que afinal não poderia ir à Tunisia porque havia-alguém-que-já-tinha-experiência-que-se-havia-apresentado-à-última-hora, ou uma história afim.
O horror.
Que não se preocupasse porque havia outros destinos como Loret de Mar, ou Benidorm.
O twist.
Ligaram-lhe da Universidade Católica (de Milão, claro está) a convidar para trabalhar na Enciclopédia Filosífica que está a ser elaborada como revisora dos textos a publicar.
E o turn.
Ligam-lhe da agência e dizem-lhe para fazer imediatamente as malas para Creta.
A pergunta.
Creta!? E como que raio é que eu vou para Creta, agora!? Será que há um ferry a partir de Brindisi? Na outra pontinha da bota? Vou mas é para a pontinha do ... ... ... Ok, Brindisi. E como é que eu vou até Brindisi?
A resposta.
Não vais. Vou ficar aqui. Creta deve ser insuportável ao fim de duas semanas, quanto mais 2 meses.
Aqui estou em casa, trabalho pela internet e giro os meus horários. E assim podes ficar aqui comigo algum tempo.
A resposta certa. Ou quase...
Aquilo que disse acerca dos quilómetros era verdadeiro. E os sentimentos verdadeiros, como o por-ti-vou-até-ao-inferno, têm que ter consequências verdadeiras como ir a Tunis, ou a Creta, ou ao inferno... ir.
A consequência daquele plano louco de Lisboa a Tunis, por Bruxelas, Milão e sabe-se lá que pontinha da bota,
teve uma consequência que não podia ignorar:
Apaixonei-me.
Pela viagem.
E ia fazê-la.
E fi-la.
Não até a Tunis, mas até Trapani.
Ela comprou-me os guias. Que melhor presente podia esperar? Ofereceu-me guias para uma viagem até ao Sul.
Para não me perder,
para voltar.
E levou-me de vespa até à estação. Milano C.le, outra vez.
Beijei-a para engolir as palavras.
Disse-lhe só uma.
E fui sozinho, olhando do combóio o frio da noite escuro, outra vez sozinho, outra vez a noite escura.
Fui ver a cor do mar em Trapani. Ali no meio do anda. A meio entre o outro lado do mundo dela e o outro lado do meu. Ali onde se apanham um ferries de 30 euros para a Tunísia,
onde o meu Sul acabou.
Miguel Maia
Vou para a Tunísia, dizia-me alegremente.
Para a Tunísia? Fazer o quê?
Vou trabalhar. Aqui há uns dias inscrevi-me numa agência de viagens que promove excursões e férias na Tunísia e eles ligaram-me. Depois fui fazer uma entrevista e eles querem que eu vá para lá. Vou receber os clientes ao aeroporto, acompanhar a vida deles no Hotel, organizar excursões de camelos pelo deserto...
(Pergunta estúpida) Então e eu?
(A resposta que se esperava) Vens ter comigo!
Eu estou de viagem marcada para Bruxelas e depois para Milão e, um dia antes de partir, dizes-me para ir ter contigo à Tunísia!?
Eu sei que é complicado, mas a vida na Tunísia não custa nada. Podias lá ficar uma semana ou duas...
Eu sei que, durante os dois anos que tinha durado a nossa relação até ali, devo ter dito muitas vezes qualquer coisa do género por-ti-amor-vou-a-todo-o-lado, vou-até-ao-inferno.
Só nunca pensei que me fossem realmente pedir para ir a Tunis por ela.
A verdade é que eu, por ela, vou mesmo a todo o lado. E isso nem deve ser visto como um compromisso de seriedade ou de sujeição ao sacrifício. Eu, mesmo sem ela, gostava de ir a todo o lado. Se ela me faz realmente percorrer os quilómetros, só tenho mesmo que agradecer o facto de ter encontrado alguém assim.
Tunis.
Quem me visse a falar com o Filipe na praça Schumann, ao lado do edifício da Comissão, não adivinhava que eu daí a menos de 2 semanas havia de estar em Tunis. Não adivinhava, porque nem sequer eu me conseguia ver em Tunis daí a duas semanas, com a roupa que tinha trazido para ficar algum tempo em Bruxelas, ou algum tempo em Milão, ou algum tempo fosse lá onde fosse.
Mas em Tunis? Nem fazia ideia de como é que se lá chega?
A melhor maneira de chegar à Tunísia quando se está no Norte de Itália é atravessar o país de autocarro até à ponta ocidental da Sicília, em Trapani, e apanhar um ferry que nos leva até lá pela módica quantia de uns 30 euros.
Acontece que em Itália não há uma companhia nacional de autocarros, até porque a companhia nacional de combóios serve realmente a nação toda. Portanto, é preciso descobrir para cada parte do trajecto qual é a companhia de autocarro que funciona na zona e ao melhor preço.
O plano final previa paragens em Roma, Nápoles, Reggio Calabria (na pontinha da bota) e Messina (já do outro lado do canal com a Sicília), Palermo, com chegada final a Trapani.
Nem todas as partes deste percurso estavam bem servidas por autocarros, havendo mesmo uma porção, de Nápoles a Roma, no caminho de volta, em que iria pedir boleia. Se toda a gente pode dizer que quem tem boca vai a Roma, eu havia de prová-lo cientificamente, poupando algum dinheiro no processo, arriscando um qualquer encontro com a Cosa Nostra pelo meio(a partir deste momento este blog passou a ser observado pela CIA... e a partir deste passou a ser traduzido pela CIA... oh, by the way, fuck you) mas não havia de ser nada.
Com apenas 35-40% do orçamento total de que dispunha empenhado na viagem, iria tentar viver por 15 euros diários na Tunísia, incluindo alojamento, ou talvez ainda menos, para poder lá ficar durante cerca de 13 dias. Espero que notem que têm agora os elementos suficientes para calcular algebricamente a miséria que eu levava comigo e assim perceber o que aquele podias-ir-lá-ter-comigo queria realmente dizer.
Surpresa.
Tinha deixado de saber se iria ou não à Tunísia. Tinha começado a hesitar ao telefone e a hesitação tinha resultado num refrear do entusiasmo do lado da agência de viagens.
Choque.
Ligaram-lhe a dizer que afinal não poderia ir à Tunisia porque havia-alguém-que-já-tinha-experiência-que-se-havia-apresentado-à-última-hora, ou uma história afim.
O horror.
Que não se preocupasse porque havia outros destinos como Loret de Mar, ou Benidorm.
O twist.
Ligaram-lhe da Universidade Católica (de Milão, claro está) a convidar para trabalhar na Enciclopédia Filosífica que está a ser elaborada como revisora dos textos a publicar.
E o turn.
Ligam-lhe da agência e dizem-lhe para fazer imediatamente as malas para Creta.
A pergunta.
Creta!? E como que raio é que eu vou para Creta, agora!? Será que há um ferry a partir de Brindisi? Na outra pontinha da bota? Vou mas é para a pontinha do ... ... ... Ok, Brindisi. E como é que eu vou até Brindisi?
A resposta.
Não vais. Vou ficar aqui. Creta deve ser insuportável ao fim de duas semanas, quanto mais 2 meses.
Aqui estou em casa, trabalho pela internet e giro os meus horários. E assim podes ficar aqui comigo algum tempo.
A resposta certa. Ou quase...
Aquilo que disse acerca dos quilómetros era verdadeiro. E os sentimentos verdadeiros, como o por-ti-vou-até-ao-inferno, têm que ter consequências verdadeiras como ir a Tunis, ou a Creta, ou ao inferno... ir.
A consequência daquele plano louco de Lisboa a Tunis, por Bruxelas, Milão e sabe-se lá que pontinha da bota,
teve uma consequência que não podia ignorar:
Apaixonei-me.
Pela viagem.
E ia fazê-la.
E fi-la.
Não até a Tunis, mas até Trapani.
Ela comprou-me os guias. Que melhor presente podia esperar? Ofereceu-me guias para uma viagem até ao Sul.
Para não me perder,
para voltar.
E levou-me de vespa até à estação. Milano C.le, outra vez.
Beijei-a para engolir as palavras.
Disse-lhe só uma.
E fui sozinho, olhando do combóio o frio da noite escuro, outra vez sozinho, outra vez a noite escura.
Fui ver a cor do mar em Trapani. Ali no meio do anda. A meio entre o outro lado do mundo dela e o outro lado do meu. Ali onde se apanham um ferries de 30 euros para a Tunísia,
onde o meu Sul acabou.
Miguel Maia